29 de abril de 2023

Contrário

 




Filtro o mundo
pelas lentes de mim
mas a mim não enxergo

Reflito o mundo
e ainda não sei o que
o mundo me tornou

Não me vejo
traçar um caminho
retilíneo ou curvo

Não sei do gesto
ao menear as mãos
exprimindo vontades

Não percebo meus olhos
se ocultam uma verdade
calada no coração

Não acompanho
ano após ano
o desmazelo da idade

Nem me atento
ao me curvar demais
ante às fraquezas do corpo

O contrário de mim
carece do espelho
para endireitar-se.

Poema, voz, vinheta musical e video: Ricardo Mann

1 de abril de 2023

Sobre trilhas

 

Desde pequeno sempre gostei de me meter mata adentro e trilhar. 

Na praia eu preferia subir pelas pedras e sumir, para desespero de meus pais.

Graças a amizades saudáveis eu adquiri o hábito de trilhar de forma mais disciplinada.

Recentemente eu e a Michele nos unimos a um grupo de trilheiros profissionais e desfrutamos de várias aventuras pelo estado do RJ. Hoje trilhamos habitualmente como se fosse um passeio comum.

Sempre ouvi, ao longo desses anos, de diversas pessoas, que esse contato com a natureza é uma forma de conexão divina, autoconhecimento, encontro com Deus, oportunidade para meditação, etc.

Sempre busquei espontaneamente esse contato e como sou espontaneamente ateu, minha visão dessa atividade é diferente.

Ao atingir o cume, após longa e cansativa trilha, minha sensação é de total pertencimento. Sim, nós pertencemos à natureza e, como animais frágeis, sentimos calor, frio, fome, sede, medo, dor e tudo mais que o ambiente nos aflige. 

Somos picados por insetos (já sofri um ataque de vespas), nos ralamos, nos ferimos em espinhos, teias de aranha grudam na cara, pedras quentes nos fritam, se uma chuva nos surpreender, ficamos molhados! 

Temos que estar alertas (sim, trilhas têm perigos), temos que respeitar o território dos outros animais. Uma vez inseridos temos que saber que não somos donos do lugar, nem que estamos assistindo por uma tela de TV. Estamos pertencendo ao ambiente, mesmo sendo animais equipados.

Ao atingir o objetivo (lembrando que o lema do trilheiro é: “só o cume interessa”), temos a maravilhosa sensação do alívio, o vento leve no rosto, a vista deslumbrante, o momento de desacelerar... Seria essa a hora da conexão divina? Talvez, mas com os pés doloridos, as costas em frangalhos, a água quase acabando, minha sensação de pertencimento continua.

Você olha para o céu e vê os urubus aguardando alguma carniça, que poderia ser você. Penso na volta, que é o momento de testar se o joelho está bom.

Ao final de tudo, com os participantes cansados e esbaforidos, ansiosos por chegar ao conforto do lar, um questionamento nos vem à mente:

“Quando será a próxima trilha?”